A vingança sobre a Função Pública
http://www.inverbis.pt/2012/artigosopiniao/jpp-vinganca-funcao-publica
José Pacheco Pereira - Uma das mais
injustas fórmulas, sabiamente explorada por este Governo, é a que
"substituiu" as medidas mais gravosas de austeridade por "cortes na
despesa pública". Treta. Substituiu algumas medidas de austeridade
genérica por outras de austeridade dirigida. Para quem? Surpresa! Para
os funcionários públicos. Fê-lo, como faz tudo, de forma pontual e aos
arranques e recuos, conforme o medo de Portas, do PSD, da rua e da
opinião pública.
De há um ano para cá que uma das linhas
de continuidade da actuação deste Governo tem sido uma hostilidade
profunda dirigida contra os trabalhadores da função pública, que
encontra mais uma vez expressão nas medidas do actual orçamento. Começou
por ser hostilidade, patente logo no dia seguinte ao primeiro anúncio
dos cortes dos subsídios de Natal e de férias, faz agora um ano, quando
Passos Coelho incitou claramente ao confronto entre trabalhadores
privados contra os "privilegiados" da função pública. Depois da decisão
do Tribunal Constitucional, a atitude do Governo, a começar pelo
primeiro-ministro, passou de hostilidade à vingança, como se todos os
meios, "custasse o que custasse", fossem usados para evitar que os
trabalhadores da função pública "escapassem" aos cortes. Os próprios
juízes foram enxovalhados com a acusação entre dentes de que tinham
decidido em causa própria, para proteger os seus subsídios, exactamente
porque eram... funcionários públicos. As mesmas insinuações foram
dirigidas ao Presidente, ele próprio também funcionário público, como
professor e funcionário do Banco de Portugal.
A palavra "equidade" tornou-se quase um
insulto e as medidas governamentais são cada vez mais punição e
vingança. "Cortar as despesas do Estado", esse "enorme esforço" que o
Governo tem andado a fazer nos últimos dias, assim revelado mais uma vez
como impreparadas e inconsistentes são as medidas que anuncia, não
significa outra coisa que não seja passar cada vez mais o peso do défice
para os trabalhadores da função pública. Procede-se, aliás, com dolo,
quebrando todos os contratos feitos já por este Governo, despedindo na
função pública dezenas de milhares de trabalhadores contratados, e
estipulando medidas muito mais gravosas do que as que conhece quem tem
emprego no sector privado. Como se verá, muitas são ilegais e
transformam o Estado no mais selvagem e prepotente dos patrões, roçando
algumas medidas o puro cinismo, como seja a atribuição das condições de
reforma aos trabalhadores não na base da situação existente quando a
pediram, mas quando a administração lhes entende responder: basta a
administração atrasar burocraticamente os processos quanto tempo for
preciso, para que os trabalhadores recebam apenas o que o Estado quer e
não aquilo a que tem direito à data do seu pedido. Isto no privado, tão
adulado por alguns próceres governamentais, seria um crime.
O par que controla o poder político em
Portugal - e saliento que não digo o poder tout court - não é
constituído por funcionários públicos, nem a maioria dos governantes
teve essa carreira. Há excepções, como é o caso dos professores, como
Crato, mas Passos Coelho, Miguel Relvas, Aguiar Branco, Miguel Macedo,
Paula Teixeira da Cruz, o núcleo duro partidário do PSD, tem carreiras
de dois tipos: ou na advocacia, ou num "privado" muito especial, aquele
que vive da dependência do Estado e das decisões políticas seja a nível
central, seja a nível autárquico.
Os casos de Passos e Relvas são típicos,
porque uma parte fundamental da sua carreira é feita dentro dos
partidos, nas "jotas", passam pelos cargos mais ligados ao controlo
político "distributivo" no Governo (Relvas) e são empregados por
terceiros em empresas em que as redes de ligação com o poder político
são fundamentais para aceder aos "negócios". Uma frase esquecida de
Ilídio Pinho quando dizia que ter acesso ao poder político valia um
milhão de contos traduz bem a utilidade dos políticos para os seus
patrões privados. As contas ainda eram em escudos, mas toda a gente
percebeu de que é que ele falava.
Essas áreas incluem a formação, no tempo
áureo dos fundos, e depois nos sectores como o ambiente, energias
renováveis, resíduos e construção, tudo áreas que conheceram grande
expansão com dinheiros públicos nos últimos anos. O caso da Tecnoforma,
envolvendo Passos e Relvas, é típico de uma espécie de empresas "jota",
em que pessoas com carreiras políticas interdependentes entre si se
organizam para aproveitar as oportunidades que o acesso ao poder
político cria. Este tipo de processos é transversal aos dois partidos,
PS e PSD, e acentuou-se nos momentos em que o dinheiro fácil, com os
fundos comunitários e com um Estado gastador, permitiram todo o tipo de
"negócios". Uns são gigantescos, como as PPP, e outros medíocres, como o
das empresas de "formação", mas são da mesma natureza e têm o mesmo
perfil de protagonistas.
Não é por acaso que o "privado" que
encontramos nos curricula governamentais, como estes de que falamos, é
sempre do mesmo tipo. Não encontramos nunca nenhum genuíno empresário
que já estivesse "feito" antes de ir para o Governo. Embora não haja
nenhuma área empresarial que não dependa de decisões estatais com alto
grau de discricionariedade, um dos piores sinais do nosso atraso, o
"privado" que chega ao Governo não tem ninguém do sector agro-pecuário,
nenhum empresário industrial, nenhum da panificação, nenhum proprietário
de restaurante, nem sequer nenhum verdadeiro pequeno empreiteiro, que
tantos os há hoje na miséria. Não há razão nenhuma para estes
empresários não terem a mesma vontade de intervenção política do que os
juvenis político-gestores, mas por muito amor ao privado da retórica
ideológica, a verdade é que estas pessoas não sobrevivem nos partidos,
porque são demasiado independentes do jogo permanente de carreiras que,
das "jotas" ao topo, marca hoje os partidos.
Por isso, nunca temos no topo do poder
partidário e governamental outro tipo de privado que não seja o
fortemente dependente do poder e das redes de conhecimentos pessoais,
assentes na interdependência e na confiança. É por isso que não adianta
dizer que tudo se passou de Barroso a Sócrates, umas vezes com o PS e
outras com o PSD, como se isso atestasse a lisura dos processos, porque a
única coisa que muda é o peso relativo dos partidos no bolo, mas estão
sempre os dois representados e os mecanismos eficazes são sempre de
"bloco central".
O caso da função pública em Portugal não
é muito diferente do que acontece noutros países, em que a regra é que
não haja condições de inteira equivalência entre o privado e o público.
Em parte, porque a qualificação média no público é superior ao privado,
logo os salários tendem a ser mais altos. Depois, porque nos países com
burocracias independentes, como no caso inglês, a mais direitos
correspondem mais deveres. E em Portugal, em períodos de expansão, houve
idêntico trade off: os salários da função pública permaneciam muito
baixos, como contrapartida às garantias de emprego. Depois, houve um
período de esbanjamento e facilitismo por responsabilidade clientelar do
poder político, que dá hoje o flanco da função pública ao ressentimento
social.
Tem a função pública pessoas a mais? Tem
certamente e, acima de tudo, mal distribuídas, mas a racionalização
desses recursos para poupar despesas não foi feita nem está a ser feita.
Despedir e cortar direitos é mais fácil do que saber "gerir", como diz
Teodora Cardoso, que não é conhecida por ser meiga quanto à consolidação
orçamental.
É a função pública politizada e, nos
últimos anos, partidarizada? É e muito, mas não é isso que estas medidas
combatem. Pelo contrário, o Estado vai ficar ainda mais dependente do
poder político, mesmo nas áreas que tinham alguma autonomia como as
forças armadas. A politização da função pública em Portugal não começou
com a democracia. O Estado Novo salazarista e caetanista
institucionalizou essa relação, obrigando os funcionários públicos a
assinar uma declaração "anticomunista", e punindo com a expulsão todos
os oposicionistas, desde a Ditadura Militar até ao caetanismo na Capela
do Rato. A cunha política e o patrocinato eram uma regra generalizada e a
União Nacional funcionava como uma enorme máquina de distribuir favores
e prebendas através de lugares, de contínuos a directores-gerais.
Depois do 25 de Abril, este processo
democratizou-se e os partidos tomaram conta do Estado, um processo
acentuado nos últimos vinte anos. Não tenho dúvidas em afirmar que este é
um dos problemas mais graves da nossa democracia, mas nenhuma destas
medidas diminui esse poder, bem pelo contrário. Veja-se como decorreu o
processo de privatizações, como são feitas as nomeações de "sempre os
mesmos", como a acesso ao poder político permanece sempre nos mesmos
círculos, da banca aos grandes escritórios de advogados, da
consultadoria económica à intermediação, para perceber que, em períodos
de crise, pelo menos os de cima continuam na mesma a mandar e a ganhar.
Numa altura de crise económica, é natural que muitos desempregados olhem
com algum ressabiamento para os funcionários públicos que lhes parecem
privilegiados, e nalguns casos são-no. Mas alimentar este tipo de
atitudes como o Governo faz é muito perigoso para a democracia, porque
um Estado estragado e ineficaz é pasto livre para haver ainda mais
partidocracia.
Também por isso, a noção de Estado e de
serviço público, fundamental num Estado democrático, assente em
burocracias de mérito, deveria ser preservada se houvesse "sentido de
Estado", o que não há.
José Pacheco Pereira | Público | 13-10-2012
2 comentários:
Desde o mais alto cargo de direcção superior na Administração Pública (AP) Central, aos cargos equivalente na Administração Pública Local, sempre me incomodou que a nomeação de AMIGOS fosse fundamentada com o argumento de que esse cargo é de "confiança política". Que eu saiba, qualquer trabalhador da AP está sujeito ao cumprimento de vários Deveres, entre eles o de Obediência e Sigilo, não importando a sua côr ou orientação políticas. Situações que muito bem conheço, por tê-las vivido ou delas ter tido conhecimento, como é que um simples lugar de direcção intermédia de 2.º grau, comparado a Chefe de Divisão, é um cargo de confiança política? Os outrora directores-gerais e directores municipais faziam a transição do poder político que perdera eleições para o novo poder político instituído por força dessas mesmas eleições. Pergunto: como é que um Primeiro-Ministro, um Ministro ou um Presidente de Câmara podem receber informação quando o 1.º acto após a tomada de posse é DEMITIR os secretários-gerais e os directores municipais e substituí-los por apoiantes políticos que são ZERO no conhecimentos das instituições? Como é que se podem colocar na PRATELEIRA dezenas de técnicos de carreira na AP e substituí-los por "especialistas" cuja competência (salvo algumas excepções, como em tudo) é a carreira nas JOTAS (sejam S ou SD) e a fidelidade ao líder e não ao Estado, por mais incompetente que o líder seja, por mais estragos que sejam causados aos Estado, que são os Portugueses? "Confiança política" deveria ser sinónimo de COMPETÊNCIA e nada mais!
Concordo consigo. Os dirigentes da administração Pública têm o dever de obediência, independentemente das suas opções políticas. Aproveito para elogiar dois antigos directores gerais do extinto Departamento Central de Planeamento que, sabendo qual era a minha filiação política (PSD) não tiveram qualquer pejo em nomear-me e até renovar a comissão de serviço de como chefe de divisão. Refiro-me ao Eng. Melo Antunes e ao Prof. Dr. João Ferreira do Amaral, muito próximo do PS e que veio a ser assessor do Jorge Sampaio. Dirão que são excepções mas no meu entender deveria ser a regra
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