Não
sou um "herói de Abril". Estava, é verdade, no Quartel em Mafra quando
ocorreu aquela "gloriosa madrugada". Mas o pelotão de armas pesadas de
infantaria, especialidade que me tinha sido atribuída graças a uma
informação da solícita PIDE/DGS, a de que eu "não dava garantias de
cooperar na realização dos fins superiores do Estado" - informação
rigorosamente verdadeira, aliás - era comandado por um tenente que não
era afecto ao MFA, donde, por causa dele, ficámos esse dia retidos no
quartel, cujas unidades rumaram a Lisboa.
Vi,
isso sim, muitos que estiveram, desde o ovo familiar, contra tudo o que
significou a democracia, a liberdade de expressão, em suma os direitos
cívicos, alinharem desde logo, pressurosos, com a revolução dos cravos e
com o socialismo como horizonte. Foi o vira-casaquismo que João Abel
Manta tão bem retratou num dos seus cartoons que o já extinto O Jornal
publicou. E surgirem, das rectaguardas da indecisão e do equívoco,
muitos "heróis" a clamarem por tudo quanto depois, com prodigalidade, se
distribuiu: reintegrações, medalhas, subvenções, lugares, cargos,
"tachos".
Não foi, porém, por causa disso que aqui vim escrever.
Deu
o 25 de Abril de 1974 em muita coisa. Tornou-se em outra coisa logo no
dia 1º de Maio seguinte. Em outra no 11 de Março de 1975. Em outra no 25
de Novembro do mesmo ano. Cada um tem o seu, houve quem os tivesse tido
a todos.
Quando, por trabalhar com
o Almirante Pinheiro de Azevedo, fiquei cercado na Residência Oficial a
São Bento, no tempo em que na Assembleia se discutia e aprovava a
Constituição de 1976 que substituiria a "plebiscitada" de 1933, senti
que, o poder na rua, a História acelerava rumo a um socialismo que eu
não queria. Quando, meses antes, assistira, como secretário do primeiro
ministro da Justiça da democracia, Francisco Salgado Zenha, às primeiras
transigências ante alguns que tinham servido também nos tribunais
plenários, pressenti que a formação de um novo regime passava por
cedências ao pior do que fora o anterior. E tanta coisa mais.
Estou
aqui apenas com uma frase e por uma frase. Ela sintetiza o que, olhando
para o País real que nos é dado sofrer e naquilo em que tudo isto se
tornou, o sentir, estou certo, da esmagadora maioria dos que estiveram
com Abril no dia em que Abril aconteceu: «não foi para isto que se fez o
25 de Abril».
O resto é, no
pardacento das comemorações oficiais, na nostalgia dos que já só
comemoram o dia com uns jantares de arrastado e tristonho saudosismo e a
dieta gastronómica, pois a idade já não perdoa o reumático e as
úlceras, na indiferença de todos os imensos outros, angustiados quantos
com o que irão dar de jantar aos filhos, nuns desfiles organizados pelo
partido que não desarma, o pútrido fim de um regime.
Esgotado,
vendido, endividado até às orelhas, pejado de oportunistas e de
medíocres, que rapa no fundo da gamela das escolhas, gerido pelos
administradores da insolvência culposa em que isto se tornou, o Estado
vergonhoso, o País triste, a Nação castrada.
José António Barreiros in A Revolta das Palavras