quinta-feira, 8 de abril de 2010

O ano em que o medo do ridículo matou o Dia das Mentiras


(*)2010: O problema não é a falta de dinheiro, é este cansaço resultante do absurdo em que o nosso quotidiano se transformou

Constato que quase ninguém brincou ao Dia das Mentiras. E temos razão para isso. Afinal tal não seria possível pois muito provavelmente a mentira seria mais verosímil que a realidade. Portugal tornou-se um palco onde nada está no sítio que lhe corresponde e ninguém faz o que lhe compete.

O Parlamento faz de tribunal. Os juízes processam quem faz declarações que consideram ofensivas no Parlamento-tribunal e não se preocupam em esclarecer os cidadãos sobre o que decidem e acontece nos tribunais de verdade. Os pais têm receio de ser pais e falam como se fossem psicólogos. O primeiro-ministro faz de conta que não fez o que dizem que fez quando não era primeiro-ministro e, enquanto primeiro-ministro, dedica grande parte do seu tempo a comentar jornais e televisões. Os funcionários públicos, consoante a idade, ora fazem de conta que vivem na Suécia nos anos 70 do século passado e reivindicam direitos adquiridos e por adquirir ora levam os dias a fazer cálculos para a salvífica reforma que lhes permita deixarem de ser funcionários. Os empresários consideram que têm sucesso quando conseguem colocar-se sob a tutela do Estado. Os ministros e gestores das empresas públicas tornaram-se negociadores de algo que designam como assinar a paz com os sindicatos mas que, por ironia, se traduz inevitavelmente em criar mais guerras com outros sindicatos que também querem uma paz daquelas.

Os polícias manifestam uma dificuldade cada vez maior em patrulhar as ruas e aspiram a tornar-se amanuenses através de transferências para as secretarias onde ficarão a salvo de ataques e de processos administrativos. Os contínuos que se tornaram auxiliares de acção educativa e seguidamente assistentes operacionais preparam-se para ser substituídos pelos polícias na resolução de conflitos dentro da escola. O Estado abomina as suas competências exclusivas: a justiça enfrenta a maior crise de credibilidade que se lhe conhece; os negócios no estrangeiro substituíram os Negócios Estrangeiros e a segurança dos cidadãos está reduzida a uma questão estatística. Mas simultaneamente o mesmo Estado todos os dias inventa novas competências que ninguém lhe pediu e não abdica de arcaísmos legislativos: do aumento dos alugueres ao período dos saldos; do teor de sal no pão ao material que deve revestir os balcões das lojas; das escolas que as crianças devem frequentar a uma política de gosto na cultura, tudo o Estado português quer fazer e nessa matéria a imaginação deste Governo é inesgotável. Fazer o que compete a um Estado é que não.

Os escândalos fazem na política as vezes das diferenças ideológicas. Os jornalistas são acusados de não encerrarem os casos que os tribunais arquivaram ou não consideraram relevantes. Os militares vivem em bicos de pés não vá o povo perceber que as Forças Armadas não são uma ONG e que no Afeganistão se combate a sério.

Este frenesim esquizofrénico tem-nos entretido muito mas era inevitável que acabássemos cansados. O país está cansado. O problema não é a falta de dinheiro. Nem sequer a crise. O problema é este cansaço resultante do absurdo em que o nosso quotidiano se transformou. Um absurdo tão absurdo que, com medo do ridículo, já não brincamos ao Dia das Mentiras.

Jornal Público
(*)Helena Matos
Ensaísta

3 comentários:

Diogo disse...

Para milhões de portugueses o problema é a falta de dinheiro.

Afonso de Melo e Cunha disse...

O problema principal é a incompetência, o roubo, a fraude, a corrupção, a pouca vergonha, a inexistente justa distribuição da riqueza produzida e o desprezo, afinal, de quem há anos nos governa, tem pelos milhões de portugueses.

Isabel Magalhães disse...

"O problema não é a falta de dinheiro,"... quer dizer não é problema para quem não tem falta de dinheiro...! Mas a falta de dinheiro, de uma larga percentagem de portugueses, é resultante do que o Afonso de Melo e Cunha diz e muito bem.