quarta-feira, 21 de junho de 2006


O Titanic
São José Almeida

A ministra que tão enérgica se revela no ataque aos professores não tem uma palavra a dizer sobre o verdadeiro Titanic da educação em Portugal: o ministério que tutela.

O que faz correr a ministra da Educação? Há mais de um ano que anuncia e pratica medidas que, garante, são para melhorar o ensino. Mas o que resulta de mais de um ano de choque é o ataque à escola pública e a humilhação da dignidade profissional dos professores.

Certamente o ensino português tem problemas. E, se a democratização social plena do ensino, após o 25 de Abril, a sua assunção universal e gratuita, foi um sucesso, é uma realidade que a qualidade do ensino ministrado levanta dúvidas.

Só que a estratégia adoptada por Maria de Lurdes Rodrigues deixa muito a desejar quanto aos objectivos. É que, para além de avançar com a ideia catastrofista sobre o estado do ensino público, Maria de Lurdes Rodrigues não prova essa desgraça, não fundamenta as suas afirmações com a divulgação de estudos que demonstrem o que diz.

Apenas participa numa espécie de campanha de opinião na qual transparece uma imagem negra do ensino público. (Será que nas escolas privadas a qualidade do ensino é assim tão melhor mesmo?) Campanha que surge em simultâneo com a multiplicação de vozes a defender a liberalização do ensino. Quando já não é só Paulo Portas a defender propostas como o cheque-ensino (medida que o seu paladino, George W. Bush, já teve de abondonar nos EUA), quando o PSD aderiu à defesa do fim da universalidade do ensino público obrigatório e gratuito inscrita na Constituição, quando a partilha do espaço da escola pública com o privado é defendida por figuras tutelares no PS, no que toca ao sector da educação, como Marçal Grilo, a questão coloca-se: será que, com este cenário de fundo, o objectivo de Maria de Lurdes Rodrigues é mesmo a optimização da escola pública?

E, sendo esse o objectivo da ministra, será que a estratégia que adoptou cumpre essa finalidade ou antes ajuda, ainda que involuntariamente, a destruir perante a sociedade a imagem da escola, criando o clima que leva a população a considerar que, embora tenha que pagar, é preferível uma escola privada, em que não haja a turbulência que se gerou na escola pública?

Por outro lado, há toda uma lógica de acção que deixa muito a desejar, como, por exemplo, o facto de, na entrevista que deu ao PÚBLICO e à Renascença, ter apresentado a questão do insucesso escolar e os dados em relação ao investimento do Estado, às realizações e meios do Ministério da Educação e aos resultados do aproveitamento final, como quem fala dos resultados de uma empresa. Isto, quando já é entregue a parcerias com privados o ensino da Música, do Inglês, do Desporto e da Expressão Dramática, que passaram a matérias extracurriculares.

Para mais, quando o ensino movimenta quantias importantes, não se pode ignorar como a sua privatização é apetecível para os investidores privados. É básico que para a escola funcionar é preciso professores e é preciso professores que sejam, como sempre foram, uma imagem de autoridade para os alunos.

Além dos pais e muitas vezes sozinhos os professores garantem a formação cívica e social dos alunos, são a imagem da autoridade, a referência do que é o comportamento socialmente aceitável.

Ora, se a ministra leva mais de um ano apostada em destruir esta imagem, como poderá a escola funcionar? E a questão é que, mesmo que Maria de Lurdes Rodrigues ache que não é isto que está a fazer, o resultado prático na escola do que tem sido o bombardeamento à dignidade profissional dos professores é só um: a sua desmoralização.

E nem é preciso chegar a extremos, como a ideia absurda de pôr os pais a avaliar os alunos, que já causou, em algumas escolas, a situação de alunos ameaçarem professores de que os seus pais os vão chumbar.


Já agora, refira-se que a actuação das aristocracias sindicais nada ajuda a dignificar a classe dos professores. A solução não é dizer que está tudo bem. Não está. Muito há a melhorar. Mas não é intelectualmente honesto responsabilizar em primeiro lugar a classe docente pelos problemas do ensino.

As causas são múltiplas e de vária ordem. Desde a questão social à heterogeneidade na sala de aula, passando pelas diferenças de aprendizagem, de acordo com o género, assuntos que em Portugal continuam por estudar.

Também não há que negar que há maus professores, desleixados, que se estão nas tintas e que até ludibriam o Estado. Como em todas as profissões, há maus profissionais e até vigaristas. Mas assumir como adversário uma classe profissional, sem a qual não há escola, parece no mínimo absurdo.

É que, além de declarações gratuitas sobre os maus professores, Maria de Lurdes Rodrigues tem tido toda uma acção dirigida contra os professores, chegando ao ponto de o novo Estatuto da Carreira Docente propor que, em cada escola, apenas um terço do seu corpo docente possa atingir o topo, criando assim professores de primeira e professores de segunda, que não poderão progredir na carreira.

Estranhamente, Maria de Lurdes Rodrigues, que tão enérgica se revela no ataque aos professores, não tem uma palavra a dizer sobre o verdadeiro Titanic da educação em Portugal: o ministério que tutela. Isto porque, se as escolas são o desastre que diz no que se refere ao ensino que é ministrado, a responsabilidade não é só dos professores, nem principalmente destes.

Há dezenas de departamentos e chefes, que aprovam e dão orientações sem nexo sobre a gestão das escolas. Departamentos que, ano após ano, são os reais mandantes no ensino. Departamento que fazem e aprovam programa e guiões para a ocupação dos tempos livres, assim como regras de gestão, que os professores são obrigados, por ofício, a cumprir.

Mas, estranhamente, Maria de Lurdes Rodrigues nada diz sobre o verdadeiro polvo da educação, ou seja, o ministério onde altos funcionários, que ninguém elegeu, têm um poder imenso sobre a educação e as escolas, poder esse conseguido à sombra dos negócios de poder do bloco central de interesses e que lhes garante o direito a pôr e dispor do ensino, quer no governo esteja o PS ou o PSD.

Sobre isto Maria de Lurdes Rodrigues nada diz. Quando é lapidar para qualquer um que as escolas não vivem em autogestão. Recebem orientações. E, se o resultado é mau, talvez a responsabilidade principal não seja de quem cumpre orientações, mas de quem as dá. Em vez de centrar o seu discurso e acção na estratégia fácil, mas perigosa para o futuro, de descredibilização dos professores perante a sociedade, talvez fosse bom a ministra olhar para dentro de casa, para os que se passa na 5 de Outubro e na 24 de Julho. Afrontar quem de facto manda e é responsável pelo mau ensino.

E, já agora, era seu dever também ajudar a reforçar a autoridades dos professores, porque os professores é que são a referência e sem referência não há escola, pública ou privada.


in O Público edição de 17 de Junho de 2006

9 comentários:

Unknown disse...

Pois...

Não me recordo, nem no pré nem no pós 25 de Abril, de alguma vez o M.E. ter funcionado bem.

Qual Titanic qual carapuça!
O citado navio, pelo menos, ainda navegou. E bem, e teria continuado se não fosse o icebergue associado a um comandante tresloucado.

O M.E. assemelha-se mais é a um navio fantasma, cheio de almas penadas de piratas e corsários, e que se recusa a afundar de vez e parar de nos assombrar!

Tenho dito.

cumps,

clarinda disse...

Muitas vozes da sociedade civil se levantam contra este vendaval lançado sobre as escolas por esta 'cabeça iluminada' que comanda a educação. É pena que de nada adiante. Quem tem a faca e o queijo na mão, que é como quem diz, a maioria no parlamento,grande parte da opinião pública, a inoperância e a insipidez de n sindicatos, mais uns exemplos de maus professores e o apoio de outros tantos, pode tudo e faz o que muito bem entender, porque é urgente apresentar resultados e diminuir orçamentos. A verdadeira escola continua adiada.

Unknown disse...

Cara laerce,

Em primeiro lugar, o meu agradecimento pela sua visita.

Em segundo lugar, não é só a "sociedade civil", que tenho amigos militares e religiosos que são pais e também protestam. (isto é um 'gag' dos meus :) )

Em terceiro lugar, concordo genericamente consigo.

Finalmente, aproveito o seu comentário para relatar a seguinte curiosidade:
Diz-se que ontem, à hora do jogo, Lisboa parou das 15h. às 17h. Não posso confirmar porque eu estava em casa a ver o jogo.
Mas, porque se falou disso nos noticiário, sabe-se que até a A.R. parou. Os deputadozinhos lá cozinharam entre eles uma maneira de se pirarem para ver o jogo. E não venham dizer que o viram nos gabinetes das comissões parlamentares enquanto trabalhavam e que só olhavam para o écran quando era golo! Nós não somos tolos! Apesar de muitas vezes o parecermos...
À hora do jogo, a minha esposa, que é professora do secundário, estava enfiada numa sala com 26 marmanjos a fazerem exame (sim, VINTE E SEIS numa sala). Para ela, tal como para os colegas e para os alunos, não houve adiamentos ou antecipações ou troca de horários como houve para os srs. deputadozinhos. O que aliás acho que aconteceu em toda a função pública.

Pergunto: onde estavam nessas duas horas os pais que supostamente a devem avaliar? Onde estava a Ministra? Onde estavam os ministros e secretários de estado? Onde estavam os deputados? Onde estava toda a gente?

Refiro-me a gente que supostamente devia estar a cumprir a função.

"Ou há moral, ou comem todos."

Sinceros cumprimentos.

José António

Unknown disse...

Um post scriptum:

Controlar VINTE E SEIS adolescentes que têm que fazer exame quietos, sossegados e em silêncio, e não copiarem, mas que estão com a cabeça algures na Alemanha e que só querem saber "Quantos há?"... não deve ser 'pêra doce'!!

cumps,

Isabel Magalhães disse...

Laerce;

Só posso concordar...

além de que sabes muito bem do que falas.

bj.

clarinda disse...

Caro José António,

Como muito bem realçou, utilizei o termo 'sociedade civil' de forma, digamos, abusiva, para me referir a quem não vive diariamente o ambiente das escolas.Posso dizer que compreendo perfeitamente a situação que relata sobre os vinte e seis.Sobre os deputados, deu-me vontade de rir um deles vir diante das câmaras televisivas dizer que estava com a televisão acesa no seu gabinete de trabalho e estava a trabalhar , mas claro, quando havia golo parava, pois então.

A propósito, onde estava esta ministra tão competente que só agora foi descoberta para este cargo? Por que não veio há mais tempo impedir este tão grande descalabro educativo? Mais, onde estava esta tão competente equipa que nos governa, há uns anos atrás? Que voz tinham eles nos anteriores governos desta cor rosa? Apontaram o que estava errado? Ou não tinham voz de todo?

Cumprimentos

Unknown disse...

Cara Laerce,

Agradeço a sua resposta ao meu comentário que subscrevo na íntegra.

Onde raio andavam eles? A ver o Euro 2004...? :)

Cumprimentos,

Anónimo disse...

Já alguém foi ao estrangeiro ver como eles fazem? Quer dizer, estive recentemente 7 dias em Espanha, fartei-me de andar de carro e ouvir rádio e nunca ouvi nas notícias que houvesse qualquer problema com a educação...

Será que não há gente neste país com experiência, quer como aluno quer como professor, do que se faz lá fora? Já chateia tanta reforma e tantas cobaias.

Isabel Magalhães disse...

Caro Leitor,

A esse respeito existe no O.L. um post com data de 9 de junho

http://oeiraslocal.blogspot.com/2006/06/educao.html

da autoria da Jurista M.J.Nogueira Pinto.

Obrigada pela sua participação.