O y do rey
14.04.2008, Rui Tavares
Na década de 1770, o Marquês de Pombal pediu aos censores do rei que tomassem uma decisão entre as várias propostas de ortografia que então surgiam - a de Luís António Verney, a de António José dos Reis Lobato e a de João Pinheiro Freire da Cunha, entre outras - para que a coroa a pudesse utilizar nos seus documentos oficiais. Depois de dois anos em discussão, os censores discordavam de quase tudo e baixaram os braços. Havia apenas uma decisão tomada: uma vez que a letra y não tem, em português, uma pronúncia diferente da letra i, poderia com vantagem ser abolida. Até que alguém se lembrou: não podemos! Não podemos, porque el-rey se escreve com ípsilon... e sua majestade "assim escreve na sua real firma".
E ora aí está como nem o Marquês de Pombal, no auge da monarquia absoluta, conseguiu chegar a um acordo ortográfico. E porquê? Por causa de alguma dificuldade intrínseca à língua? Não - por causa de uma dificuldade política. A dificuldade política era esta: colocados perante uma decisão, os decisores mal chegaram a perguntar-se o que podia fazer-se, porque estavam obcecados com o que não se podia fazer. A obsessão com o que não se pode fazer, em Portugal em geral e em particular, ganha sempre à ideia do que se pode fazer. Por esse mundo fora, as universidades correm para abrir departamentos de inglês e, também, de espanhol. Quanto aos departamentos de português temos de pedinchar para abrirem novos e rezar para não fecharem os que existem. Mas não lhes facilitamos a vida: o professor brasileiro vai ensinar na aula da manhã que o professor português, na aula da tarde, está errado - e vice-versa. O Instituto Cervantes, tal como a Alliance Française, tem meios ao seu dispor com que o Instituto Camões só pode sonhar. Mas se um dia quiséssemos juntar dinheiro e esforços com os brasileiros para tentar dar um pouco mais de luta, a primeira pergunta seria: sim, mas em que ortografia? Passei os últimos dias no "Letras em Lisboa", a versão portuguesa do excelente Fórum das Letras de Ouro Preto. Como é natural, toda a gente - portugueses, brasileiros e africanos - se entendeu perfeitamente. Mas se os respectivos governos quisessem emitir um comunicado sobre o evento, teriam de emitir dois comunicados - um em cada ortografia. Com esses dois comunicados oficiais, dirigir-nos-iamos às Nações Unidas para pedir que o português fosse língua de trabalho, com duplicação de custos, incerteza sobre a norma a utilizar e mais trabalho em geral. Para quê fazer fácil, quando se pode fazer difícil? Como em 1770, estamos obcecados com o que não podemos fazer. Os brasileiros não podem perder o trema em lingüiça, com medo de não saber pronunciar a palavra e morrerem à fome. E os portugueses não podem perder as consoantes mudas, para saberem que têm de abrir a vogal anterior. Porém, mostrem-me um português que pronuncie actividade com a primeira vogal aberta, e eu mostrar-lhes-ei dez que pronunciam "âtividade". E, por último, temos Vasco Graça Moura prevendo que as famílias portuguesas terão de inutilizar milhares de livros quando o acordo for aprovado. Quero daqui lançar um apelo público a Vasco Graça Moura: não deite no lixo os seus livros na velha ortografia quando ela caducar. Não deite fora os seus livros oitocentistas que escrevem pharmacia com ph, nem os setecentistas que escrevem el-rey com ípsilon. Não lance esses livros no lixo: ofereça-mos.
Jornal Público de 14.04.2008
14.04.2008, Rui Tavares
Na década de 1770, o Marquês de Pombal pediu aos censores do rei que tomassem uma decisão entre as várias propostas de ortografia que então surgiam - a de Luís António Verney, a de António José dos Reis Lobato e a de João Pinheiro Freire da Cunha, entre outras - para que a coroa a pudesse utilizar nos seus documentos oficiais. Depois de dois anos em discussão, os censores discordavam de quase tudo e baixaram os braços. Havia apenas uma decisão tomada: uma vez que a letra y não tem, em português, uma pronúncia diferente da letra i, poderia com vantagem ser abolida. Até que alguém se lembrou: não podemos! Não podemos, porque el-rey se escreve com ípsilon... e sua majestade "assim escreve na sua real firma".
E ora aí está como nem o Marquês de Pombal, no auge da monarquia absoluta, conseguiu chegar a um acordo ortográfico. E porquê? Por causa de alguma dificuldade intrínseca à língua? Não - por causa de uma dificuldade política. A dificuldade política era esta: colocados perante uma decisão, os decisores mal chegaram a perguntar-se o que podia fazer-se, porque estavam obcecados com o que não se podia fazer. A obsessão com o que não se pode fazer, em Portugal em geral e em particular, ganha sempre à ideia do que se pode fazer. Por esse mundo fora, as universidades correm para abrir departamentos de inglês e, também, de espanhol. Quanto aos departamentos de português temos de pedinchar para abrirem novos e rezar para não fecharem os que existem. Mas não lhes facilitamos a vida: o professor brasileiro vai ensinar na aula da manhã que o professor português, na aula da tarde, está errado - e vice-versa. O Instituto Cervantes, tal como a Alliance Française, tem meios ao seu dispor com que o Instituto Camões só pode sonhar. Mas se um dia quiséssemos juntar dinheiro e esforços com os brasileiros para tentar dar um pouco mais de luta, a primeira pergunta seria: sim, mas em que ortografia? Passei os últimos dias no "Letras em Lisboa", a versão portuguesa do excelente Fórum das Letras de Ouro Preto. Como é natural, toda a gente - portugueses, brasileiros e africanos - se entendeu perfeitamente. Mas se os respectivos governos quisessem emitir um comunicado sobre o evento, teriam de emitir dois comunicados - um em cada ortografia. Com esses dois comunicados oficiais, dirigir-nos-iamos às Nações Unidas para pedir que o português fosse língua de trabalho, com duplicação de custos, incerteza sobre a norma a utilizar e mais trabalho em geral. Para quê fazer fácil, quando se pode fazer difícil? Como em 1770, estamos obcecados com o que não podemos fazer. Os brasileiros não podem perder o trema em lingüiça, com medo de não saber pronunciar a palavra e morrerem à fome. E os portugueses não podem perder as consoantes mudas, para saberem que têm de abrir a vogal anterior. Porém, mostrem-me um português que pronuncie actividade com a primeira vogal aberta, e eu mostrar-lhes-ei dez que pronunciam "âtividade". E, por último, temos Vasco Graça Moura prevendo que as famílias portuguesas terão de inutilizar milhares de livros quando o acordo for aprovado. Quero daqui lançar um apelo público a Vasco Graça Moura: não deite no lixo os seus livros na velha ortografia quando ela caducar. Não deite fora os seus livros oitocentistas que escrevem pharmacia com ph, nem os setecentistas que escrevem el-rey com ípsilon. Não lance esses livros no lixo: ofereça-mos.
Jornal Público de 14.04.2008
4 comentários:
Sendo naturalmente favorável à evolução, não posso deixar de reparar nalgumas incorrecções deste texto:
1. A língua inglesa tem duas escritas diferentes no Reino Unido e nos EUA e nem por isso fizeram alguma vez acordos ortográficos. Não sei qual das versões é usada nas Nações Unidas mas sei que de certeza os ingleses usam a sua e os americanos também, quando lá produzem documentos.
2. O autor esquece-se de dizer a verdade real por trás deste acordo: os brasileiros não vão mudar uma vírgula à sua escrita (talvez a retirada do trema seja uma pequena excepção) e os portugueses, angolanos, guineenses, moçambicanos, sãotomenses, caboverdianos e timorenses vão ter que mudar dezenas de palavras. Não me parece, de todo, justo.
3. Lá por haver algumas letras que não se pronunciam, isso não quer dizer que as retiremos da nossa língua. Qualquer dia fazemos acordos ortográficos para ficarmos a escrever como os jovens fazem nas mensagens SMS: é uma escrita muito mais simples e entende-se, não é? No entanto, quem se imagina a escrever assim num documento oficial, por exemplo?
Bom dia, 'Oeiras';
Subscrevo na íntegra.
Obrigada.
I.
2 exemplos que acho elucidativos, um do acordo de 1945 o outro se este agora vier a ser concretizado:
saber um texto de cor
o vermelho é uma cor (antes escrevia-se côr)
coação - acção de coar; côa
coacção - acção de coagir
E se este "c" mudo cai, como é? Ou será que este, por ter outra palavra já existente sem "c" mudo, já não cai?
Senhora Isabel Magalhães,reparei numa opinião sua aqui neste blogue e não quis deixar de a informar. A palavra "facto" vai continuar a escrever-se da mesma forma, isto porque não se trata de um "c" mudo. Leia o novo acordo, informe-se melhor antes de opinar. Eu, como professor nesta área, acho que este acordo já devia ter entrado em vigor há 10 anos. Se queremos continuar a ser a 3ªlíngua ocidental mais falada no mundo, temos que nos ajustar em termos linguísticos.
O ESPANHOL, fala-se de um modo diferente em todo o mundo mas escreve-se da mesma forma e é isso que tem que acontecer na nossa língua. O acordo só vai fazer com que coisas que já não deveriam existir, desapareçam de vez. Já houve 4 acordos ao todo, Sabe como se escrevia "Lírios" antes do primeiro acordo? Era "Lyrios". Se acha que vai continuar a escrever da mesma forma como se escrevia até aqui, ninguém a impede. A minha avó também escreve Pharmácia em vez de Farmácia. É assim, os velhos do Restelo sê-lo-ão até morrer.
Todos os anos entram vocábulos novos na nossa língua. (telemóvel, por exemplo entrou para o dicionário há pouco tempo). A língua está em constante mudança.
Deixem estas coisas para quem percebe e não mandem "bitaques" sem sentido.
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