terça-feira, 11 de março de 2008

Por respeito


Pertenço a uma geração que nunca santificou os professores. Mantenho fidelidade ao preceito. Apesar disso, há alguns de que não me esqueço, os que foram importantes para a minha formação. Não são muitos. Recordo-me, em particular, da minha professora de Português no 7.º ano de escolaridade, então o terceiro do ensino secundário. A dra. Odete era austera, exigente e gostava mesmo de ensinar. Apreciava a disciplina tanto quanto a inovação e incentivou a turma a escrever através de um jornal de parede. Puto e convencido, achei que seria um espaço de liberdade em tempos de ditadura. Afinal, eram os próprios alunos que dirigiam o jornal. Para o 1.º de Maio, fiz uma redacção, seguramente comprometida com a classe operária e, portanto, impublicável à luz das normas em vigor. A sôp’soura fez o que tinha a fazer – proibiu o artigo. Protestei e, na voragem, mandei-a àquela parte. Ela, de novo, fez o que tinha a fazer: pôs-me fora da aula, apresentou queixa e eu apanhei com três dias de suspensão e negativa a comportamento. Nunca mais esqueci o incidente: ela não tinha razão, mas procedeu como devia; eu tinha-a, mas perdi-a no modo como reagi. Eis como vejo a escola secundária – como lugar de aprendizagem da vida, menos como armazém de matérias e nunca como funil para o abandono escolar. Eduquês? Chamem-lhe o que quiserem.

As coisas mudaram muito desde então. Alargou-se a escolaridade obrigatória e o acesso ao ensino. Não se conhecem processos de democratização sem problemas de qualidade. Entraram no corpo docente muitos professores sem vocação. Como entraram nas escolas os filhos das famílias que tinham, na melhor das hipóteses, a quarta classe. Tudo isto constitui um enorme sarilho, mas ele é infinitamente preferível a um sistema que se contentava em reproduzir as desigualdades sociais que existiam. Como se tem lidado com esta mudança que o próprio Estado, e bem, impulsionou? Mal. Primeiro, transformaram-se os alunos em cobaias de experimentação legislativa e carregaram-nos com cargas horárias absurdas; agora, afogam-se os professores em papéis e desconfiança. É certo que os seus interesses não coincidem obrigatoriamente com os da escola. Mas, se não for com os professores, com quem se melhora o que temos? A questão do diálogo não é um problema de forma ou de jeito – ocupa o centro da política, neste caso por falta de comparência. O Governo deveria perceber porque falhou o habitual truque de pôr todos contra alguns. A população percebe que não é assim que se resolvem problemas difíceis. Como pai, só posso dizer que apoio a manifestação de hoje. Como antigo aluno, honro a minha professora de Português: tudo o que importa na vida começa pelo direito ao respeito. É esta a lição do movimento. Não vem nos programas, mas é a que explica porque é, afinal, tão importante a escola pública.

Publicação: Saturday, March 08, 2008 8:00 AM por
MiguelPortas

4 comentários:

Isabel Magalhães disse...

"fiz uma redacção, seguramente comprometida com a classe operária"

No 7º ano, antigo 3º ano, 13... 14 anos de idade, com uma vivência não próxima da classe operária, - ou será que era? - é um bocadinho difícil de acreditar mas "prontos..." está bem!

Fernando Lopes disse...

Eu não tenho procuração do autor...mas quere-me parecer que há na frase alguns laivos de ironia.

Oeiras disse...

Clap, clap... palmas, Miguel Portas no seu melhor. Verdade ou menos verdade, ilustra bem o que o ensino deveria ser e o que provavelmente já não é.

Anónimo disse...

« O Governo deveria perceber porque falhou o habitual truque de pôr todos contra alguns. A população percebe que não é assim que se resolvem problemas difíceis. Como pai, só posso dizer que apoio a manifestação de hoje. Como antigo aluno, honro a minha professora de Português: tudo o que importa na vida começa pelo direito ao respeito. É esta a lição do movimento. Não vem nos programas, mas é a que explica porque é, afinal, tão importante a escola pública. »

Muito bem este texto e o resto é conversa, meus senhores!