quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

O absurdo não é inconstitucional

Opinião
Ricardo Araújo Pereira


É possível que a maioria dos portugueses não compreenda a guerra a que temos vindo a assistir, mas nenhum ficará indiferente à sua violência. Trata-se de um desses conflitos sangrentos perante os quais até um ateu dá por si a levantar os braços para o céu e a perguntar: «Meu Deus, meu Deus, meu Deus, porquê tanto ódio? Porque será que o Sócrates e o Cavaco não conseguem entender-se?»

A contenda, que começou ainda no ano passado, agudizou-se no início de 2009, na altura do discurso de ano novo do Presidente. Quando todos pensávamos que Cavaco Silva iria aproveitar a ocasião para falar mais um pouco sobre o estatuto político-administrativo dos Açores (um tema acerca do qual é sempre interessante conhecer mais pormenores), ou ainda que alargasse o âmbito das suas intervenções a outros assuntos de carácter burocrático-regional, como o articulado do regulamento para novas propostas de hino da Madeira, ou o regime jurídico do saneamento básico no Douro Litoral, eis que o Presidente resolve debruçar-se sobre problemas que realmente preocupam os portugueses. Sem aviso, Cavaco Silva aborda questões centrais da vida do País – ainda por cima, ao que parece, dizendo a verdade. Não foi para isto que os portugueses o mandataram.

A crueza da mensagem de ano novo tem uma explicação. Sócrates ofendeu o Presidente quando não alterou uma vírgula na lei do divórcio e agravou a desfeita no caso do estatuto dos Açores. Por isso, Cavaco vinga-se agora dizendo a verdade sobre o estado do País ao povo português. É verdade que a provocação do Governo foi perversa, mas a resposta do Presidente é de uma maldade desproporcionada. A Sócrates resta a consolação de ter feito a vida negra a Cavaco: o Presidente terá muita dificuldade para encontrar assuntos nos quais possa estar em desacordo com o primeiro-ministro, uma vez que o próprio primeiro-ministro está muitas vezes em desacordo com o primeiro-ministro. Quando avisou que este ano será difícil, Cavaco desmentiu Sócrates, que previu que em 2009 as famílias portuguesas teriam maior poder de compra, mas concordou com Sócrates, que disse que este ano seria o cabo das Tormentas da crise.

O problema é que Cavaco Silva também se defende muito bem. Se Sócrates diz uma coisa e o seu inverso, o Presidente diz uma coisa e pratica o seu inverso. Também baralha o adversário. Cavaco dirigiu-se ao País para dizer que a lei que tinha acabado de aprovar continha vários aspectos absurdos, mas não indicou nenhum deles ao Tribunal Constitucional, para que este expurgasse a lei da incongruência. É possível que Cavaco tenha desconfiado que, em Portugal, o absurdo não é inconstitucional. E é possível que tenha razão.

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