Neste país só haverá condenações por corrupção quando corruptores e corrompidos se juntarem a uma só voz para reclamar a sua condenação. Ou seja, nunca mais.
A sentença que condenou Fátima Felgueiras por três crimes menores e a absolveu das acusações de corrupção é o testemunho que faltava para termos a certeza de que Portugal é fantástico. Em causa pode estar o corolário de uma interpretação legítima do Direito e da Justiça, mas a sua primeira consequência é levar o país para a irrealidade. Seria apenas uma consequência da livre convicção de quem julga se em causa não estivesse uma distância intransponível entre os factos dados como provados e as ilações que o colectivo de juízes deles extraiu. Não, desta vez, não se podem culpar os agentes da Polícia Judiciária pelo desfecho do processo. Não foi por falta de cartas, cheques, rastos, datas ou testemunhos probatórios que o caso do saco azul deu no que deu. Não foi pelo facto de o tribunal os considerar processualmente inválidos ou inconsistentes que se chegou onde se chegou. Não foi por não se conseguir saber com cristalina evidência que uma empresa devolveu para uma conta do BES parte de um pagamento feito pela Câmara de Felgueiras que o tribunal não dispunha de provas de que algo misterioso se passava.
Tudo o que era essencial no processo, a generalidade dos factos que, tendo ou não prescrito, serviam de prova para a existência numa pantanosa teia de relações perigosas entre o PS, a Câmara de Felgueiras e a Resin foi dada como provada. Mas, há sempre um mas. Algures num texto de jurisprudência ou numa alínea de um código há sempre algo que desfoca a realidade e a envolve na intransponível opacidade da dúvida. E assim se ergueu um enorme muro de conclusões perigosas: que não é crime haver uma empresa que entra num negócio público sem concurso, que apresenta facturas através de testas-de-ferro e que, após receber cheques como pagamento, devolve para um saco azul a fatia mais grossa da verba que recebeu; que o facto de parte dessa verba servir para adquirir um carro à autarca que assinou os cheques não prova coisa nenhuma. Que ideia: neste país de santos não há a mínima possibilidade de haver quem se governe à custa de cargos públicos. E muito menos partidos que se financiem à custa de generosidades contratuais ou perdões de multas e quejandos em sede da autarquia.
Face à contradição entre as provas e a sentença do caso saco azul, podemos ficar com uma conclusão para a posteridade: neste país só haverá condenações por corrupção quando corruptores e corrompidos se juntarem a uma só voz para reclamar a sua condenação. Ou seja, nunca mais. Se houve concursos simulados, falsificações, retornos de verbas, se tudo o que o tribunal verificou e deu como incontestável indiciava uma nebulosa de interesses violadores dos mais elementares princípios do interesse público, pouco importou. Na idílica visão de boa parte dos nossos magistrados, o pecado original nunca existiu e Fátima Felgueiras é disso o mais perfeito testemunho.
Diz Fátima Felgueiras que acabou a condenação que dura há dez anos e, na estrita perspectiva do que é o Estado de direito, ninguém a pode censurar. Mas se o que conta para o seu perfil de futuro é a acusação de três crimes de gravidade comedida (aceitando-se previamente que há crimes assim), no sentimento geral da comunidade que a viu ser acusada, que a viu fugir para o Brasil e que a viu ser absolvida sobrará sempre aquela terrível consciência de que o seu processo é mais uma bala no frágil corpo do sistema judicial.
O que se passou ontem em Felgueiras é por isso um testemunho da propensão para irrealidade do formalismo. Mas é também um sintoma trágico da degradação do nível exigência que qualquer sociedade sã deve ter em relação à sua esfera pública. Quando perante factos como os que estiveram em julgamento se prefere olhar o mundo como um paraíso em vez de se acreditar que a corrupção existe e se move como um polvo nas entranhas do poder político, está-se a dar luz verde para que seja legítimo acreditar, como muitos, que todos os políticos e, mormente, todos os autarcas são corruptos e que o sistema existe para os proteger.
Aguardemos. Talvez haja recurso da decisão da primeira instância, talvez na Relação haja quem não acredite no Menino Jesus e encare os factos com a crueza da realidade. Talvez, até, os factos dados como provados sejam reavaliados e a decisão absurda de ontem ganhe finalmente coerência a posteriori. Ou talvez não, talvez estejamos condenados a tudo tolerar à custa de um conceito de justiça que vive à procura de expedientes processuais para nos fazer acreditar num mundo melhor.
5 comentários:
1. Três anos e uns trocados de pena suspensa, não foi?
2. Perda de mandato mas parece que vai recorrer (advogado dixit);
3. Multa de 144 euros; terei lido bem?!!! (aqui é que foi uma multa 'à grosa'!) ihihih
4. Não sei quem são os santinhos da Fátinha mas parece que não 'funcionam' mal!
Em Portugal a justiça é muito estranha . Oito anos para chegar a julgamento e a montanha parir um rato não é justiça . Ou quem sabe talvez seja pelo facto de a dita senhora ter fugido para o Brasil e de ter até como testemunhas abonatórias o Armando Vara e outros.
O mais grave é que vamos tendo esta sensação, que nunca nos larga, que a justiça em Portugal não existe . Isto põe obviamente em causa a democracia .
E cá para mim, desconfio que o processo do sr. Isaltino Morais, há-de ir de recurso em recurso até ao arquivamento final.
Portugal é um país em que a corrupção navega em banda larga .
Um escândalo, falta de vergonha na cara, país de fantoches...
Se não fosse tão velho ía criar raízes para outro lado.
É triste este espectáculo que a justiça dá. Que mau exemplo para todo o cidadão e para os nossos Jovens.
José da Mota Carvalho
Felgueiras, Felgueiras. Rima com... com quê?
Enviar um comentário