domingo, 2 de novembro de 2008

A crise, versão do costume

Opinião
2008-10-31



Não deixa de ser surpreendente que, estando nós, como está o Mundo, a braços com uma crise que se deve, na essência, a desvarios de gestores milionários (no dialecto dos próprios, diz-se "deficientes análises conjunturais"), haja quem encontre disponibilidade mental para se indignar com um aumento de 24 euros no salário mínimo nacional (SMN).

O suficiente, se quisermos usar de demagogia em saldo, para adquirir dois pacotes médios de fraldas para bebé ou pagar uma refeição para duas pessoas, num restaurante pacato. Por mais que as decisões do Governo possam ter como referência o ciclo eleitoral de 2009, parece-me de elementar justiça que quem esteja a sofrer mais na pele os efeitos deste turbilhão seja ajudado. E, sobre este princípio, todos - patrões, sindicatos e partidos - deviam estar de acordo. Mas assim não sucede.

Os patrões, que já em 2005 agitaram o fantasma do desemprego, voltaram a recorrer ao expediente. O raciocínio versa assim: é preferível não mexer nos salários do que arriscarmos um aumento de 24 euros e, dessa forma, engordarmos o monstro do desemprego. Ou, como sintetizou Manuela Ferreira Leite, na entrevista de anteontem, à SIC-Notícias, os portugueses têm de optar: ou o emprego ou o salário mínimo.

Pelo meio - e num bem sucedido esforço para não ajudar em nada à discussão -, Augusto Morais, presidente da Associação Nacional das Pequenas e Médias Empresas, produziu o seguinte pensamento: "A associação [...] vai determinar junto dos associados que não renovem os contratos [a termo]". Trocado por miúdos, o que este senhor fez foi uma ameaça velada de que, por sua vontade - e, até prova em contrário, das empresas que por ele se deixam representar -, mais de 43 mil trabalhadores que ganham 426 euros não vão ver os contratos renovados em 2009. Chantagem rasteira que tem o óbvio propósito de ganhar terreno reivindicativo na Concertação Social - a mesma Concertação Social que, em 2006, aceitara o valor destes aumentos.

Lamentavelmente, o tecido empresarial português continua a ser liderado por gente que enche a boca com palavras como "formação profissional", mas que faz da política de baixos salários a sua formatação profissional.

Há que reconhecer, todavia, que aumentar o rendimento mensal de milhares de trabalhadores pode ser um pau de dois bicos. Há analistas económicos que acham que as empresas vão ser forçadas a despedir; e há outros para quem a medida não tem efeitos nocivos na taxa de desemprego e na saúde da economia e que até contribui para sedimentar a ligação do trabalhador ao posto de trabalho.

Mas, achemos o que acharmos, não podemos é pedir aos mais fracos para pagarem a factura. Quem gere o dia-a-dia com pouco mais de 400 euros não quer saber da conjuntura ou do défice orçamental. Porque, para esses, a crise não é de agora. A crise não é parte de um ciclo económico. A crise é parte da vida.

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