quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

MISSÃO IMPOSSÍVEL

Vasco Graça Moura
escritor




Em 20 de Fevereiro de 1745, Alexandre de Gusmão, secretário de D. João V, advertia o desembargador Inácio da Costa Quintela de que as leis "nunca devem ser executadas com aceleração", pois "nos casos crimes sempre ameaçam mais do que na realidade mandam, devendo os ministros executores delas modificá-las em tudo o que lhes for possível, principalmente com os réus que não tiverem partes; porque o legislador é mais empenhado na conservação dos vassalos do que nos castigos da Justiça e não quer que os ministros procurem achar nas leis mais rigor do que elas impõem". E concluía: "Deste modo de proceder ordena S. Majestade se abstenha e que esta lhe sirva de aviso."


Ocorreu-me isto ao ler o que o inspector- -geral da ASAE diz numa entrevista ao Sol. Para ele, tudo são regulamentos a aplicar, com uma aceleração maquinal e implacável, e sem ter em conta os contextos concretos ou a situação do País. E tirar-nos da cauda da Europa é ser-nos indiferente que outros países não façam assim, mantenham a sua culinária tradicional e salvem as suas actividades de restauração.


Numa economia em crise, 50% dos restaurantes, regra geral pequenas empresas que asseguram um pouco por toda a parte a subsistência familiar e alguns postos de trabalho, não cumprem integralmente os regulamentos e assim, segundo o inspector-geral, têm de fechar. Mesmo que o desemprego, a desertificação, os prejuízos para o turismo e até a fome sejam males muito superiores aos decorrentes de uma série de minudências a que a ASAE franze o nariz.


Tanto zelo executório deveria ser temperado pelo bom-senso e pelas normas, nacionais e internacionais, que impõem o maior respeito pelas tradições culturais, em que se inclui a gastronomia com a imensa variedade das suas propostas e a artesanalidade necessária da sua confecção, requisito essencial da genuinidade, da tipicidade e da qualidade.


Uma coisa é reprimir infracções verificadas (falta de limpeza, mixórdia, deterioração, gato por lebre, fuga ao fisco...) e responsabilizar exemplarmente os seus autores, outra é querer preveni-las em absoluto e em abstracto, metendo insensatamente no mesmo saco tanto o que pode ser muito grave como o que não tem importância nenhuma. Uma coisa é o controlo de regras básicas de higiene e segurança alimentar, outra o vezo inquisitorial sem critério ou discriminação, em nome do politicamente correcto, da rastreabilidade e do Estado da colher de pau.


A carne fica oito a dez dias em vinha de alhos, numa receita de Lamego; a perdiz é de comer "com a mão no nariz"; a caça não sai propriamente dos matadouros; a temperatura das mãos que amassam certos queijos artesanais é determinante da sua qualidade; há vinhos que envelhecem em barricas de madeira de há muito impregnadas; a culinária caseira, só viável como actividade de subsistência se fornecer restaurantes (o que, aliás, o fisco pode sempre controlar), é um repositório riquíssimo que inevitavelmente se perderá se não puder continuar nos termos em que existe; e assim por diante...


Se tudo isso e muito mais for proibido, ou plastificado, liofilizado, higienizado até ao ridículo, nem por isso aumentará a segurança alimentar, mas em compensação dar-se-á uma destruição obstinada e sistemática do património cultural e do tecido económico.


Esse fundamentalismo de sinal totalitário tem tanto de delirante como de missão impossível. A menos que, um dia destes, a ASAE resolva mandar os clientes andarem sem sapatos nos restaurantes e criar uma inspecção para o teor dos sulfatos de peúga; verificar com uma zaragatoa, à entrada, a limpeza das mãos deles e se trazem as unhas de luto; impor uma lavagem do dinheiro em espécie e dos cartões de crédito antes de entregues para pagar a conta; proibir toalhas e guardanapos de pano nas mesas; obrigar os empregados a usarem escafandro e o cozinheiro a encapuzar-se para evitar que espirre para cima do esparguete; e, last but not least, determinar a imprescindível desinfecção do cu da galinha antes de ela pôr os ovos...

2 comentários:

Laetitia disse...

Estou a rir-me com os meus botões a imaginar uma cena do estilo:

WC da ASAE...

O funcionário a ir ao WC, com um saco que contém, Sonasol, luvas de latex, uma máscara e uma máquina de vapor.

Então o dito primeiro tem de colocar as luvas e a máscara, depois parte por desinfectar a sanita com o detergente e passar muito bem o vapor pelo assento (não vá o Sonasol ser agressivo em demasia para a derriére do mesmo). Depois tem de se colocar a modos de grande distância da sanita antes de puxar o autoclismo (é que quando se puxa o dito as partículas fecais sobem cerca de 3 metros no ar), depois volta passa de novo o detergente e dá-lhe no vapor.
Como corrolário da operação acima descrita, fecha o w.c e deixa de quarentena uns dias por via das dúvidas...

Fernando Lopes disse...

A mim parece-me que, tirando o caso ASAE – aplicação zelosa das normas da UE, a Justiça em Portugal peca pela demora na sua aplicação e por admitir processos dilatórios aos endinheirados.
Claro que as questões culturais devem ser consideradas.
Apoiem e criem condições para que a pequena e média restauração possa modernizar-se. Informem os interessados. Em Caxias a praça vai desaparecer e em seu lugar vai surgir um espaço com lojas. Pois fui eu que informei dois comerciantes da existência da AERLIS em Oeiras que os podia ajudar na reconversão do espaço.
Se calhar a ASAE deveria actuar de forma pedagógica.
Acabo de ouvir na rádio que o MIN. Da Saúde deu ordem para a ASAE avançar para os cafés e restaurantes que optam pela sala de fumo sem condições prévias previstas na lei (instalação do respirador). Enfim a procissão ainda vai no adro.