terça-feira, 15 de janeiro de 2008

SÓCRATES E A LIBERDADE. "A passividade de tanta gente. Será anestesia? Resignação? Acordo? Só se for medo..."

Sócrates e a Liberdade
por António Barreto
(Público, 6 de Janeiro de 2008)


EM CONSEQUÊNCIA DA REVOLUÇÃO DE 1974, criou raízes entre nós a ideia de que qualquer forma de autoridade era fascista. Nem mais, nem menos. Um professor na escola exigia silêncio e cumprimento dos deveres? Fascista! Um engenheiro dava instruções precisas aos trabalhadores no estaleiro? Fascista! Um médico determinava procedimentos específicos no bloco operatório? Fascista! Até os pais que exerciam as suas funções educativas em casa eram tratados de fascistas. Pode parecer caricatura, mas essas tontices tiveram uma vida longa e inspiraram decisões, legislação e comportamentos públicos. Durante anos, sob a designação de diálogo democrático, a hesitação e o adiamento foram sendo cultivados, enquanto a autoridade ia sendo posta em causa. Na escola, muito especialmente, a autoridade do professor foi quase totalmente destruída.

EM TRAÇO GROSSO, esta moda tinha como princípio a liberdade. Os denunciadores dos 'fascistas' faziam-no por causa da liberdade. Os demolidores da autoridade agiam em nome da liberdade. Sabemos que isso era aparência: muitos condenavam a autoridade dos outros, nunca a sua própria; ou defendiam a sua liberdade, jamais a dos outros. Mas enfim, a liberdade foi o santo e a senha da nova sociedade e das novas culturas. Como é costume com os excessos, toda a gente deixou de prestar atenção aos que, uma vez por outra, apareciam a defender a liberdade ou a denunciar formas abusivas de autoridade. A tal ponto que os candidatos a déspota começaram a sentir que era fácil atentar, aqui e ali, contra a liberdade: a capacidade de reacção da população estava no mais baixo.

POR ISSO SINTO INCÓMODO em vir discutir, em 2008, a questão da liberdade. Mas a verdade é que os últimos tempos têm revelado factos e tendências já mais do que simplesmente preocupantes. As causas desta evolução estão, umas, na vida internacional, outras na Europa, mas a maior parte residem no nosso país. Foram tomadas medidas e decisões que limitam injustificadamente a liberdade dos indivíduos. A expressão de opiniões e de crenças está hoje mais limitada do que há dez anos. A vigilância do Estado sobre os cidadãos é colossal e reforça-se. A acumulação, nas mãos do Estado, de informações sobre as pessoas e a vida privada cresce e organiza-se. O registo e o exame dos telefonemas, da correspondência e da navegação na Internet são legais e ilimitados. Por causa do fisco, do controlo pessoal e das despesas com a saúde, condiciona-se a vida de toda a população e tornam-se obrigatórios padrões de comportamento individual.

O CATÁLOGO É ENORME. De fora, chegam ameaças sem conta e que reduzem efectivamente as liberdades e os direitos dos indivíduos. A Al Qaeda, por exemplo, acaba de condicionar a vida de parte do continente africano, de uma organização europeia, de milhares de desportistas e de centenas de milhares de adeptos. Por causa das regulações do tráfego aéreo, as viagens de avião transformaram-se em rituais de humilhação e desconforto atentatórios da dignidade humana. Da União Europeia chegam, todos os dias, centenas de páginas de novas regulações e directivas que, sob a capa das melhores intenções do mundo, interferem com a vida privada e limitam as liberdades. Também da Europa nos veio esta extraordinária conspiração dos governos com o fim de evitar os referendos nacionais ao novo tratado da União.

MAS NEM É PRECISO IR LÁ FORA. A vida portuguesa oferece exemplos todos os dias. A nova lei de controlo do tráfego telefónico permite escutar e guardar os dados técnicos (origem e destino) de todos os telefonemas durante pelo menos um ano. Os novos modelos de bilhete de identidade e de carta de condução, com acumulação de dados pessoais e registos históricos, são meios intrusivos. A videovigilância, sem limites de situações, de espaços e de tempo, é um claro abuso. A repressão e as represálias exercidas sobre funcionários são já publicamente conhecidas e geralmente temidas. A politização dos serviços de informação e a sua dependência directa da Presidência do Conselho de Ministros revela as intenções e os apetites do Primeiro-ministro. A interdição de partidos com menos de 5.000 militantes inscritos e a necessidade de os partidos enviarem ao Estado a lista nominal dos seus membros é um acto de prepotência. A pesada mão do governo agiu na Caixa Geral de Depósitos e no Banco Comercial Português com intuitos evidentes de submeter essas empresas e de, através delas, condicionar os capitalistas, obrigando-os a gestos amistosos. A retirada dos nomes dos santos de centenas de escolas (e quem sabe se também, depois, de instituições, cidades e localidades) é um acto ridículo de fundamentalismo intolerante. As interferências do governo nos serviços de rádio e televisão, públicos ou privados, assim como na 'comunicação social' em geral, sucedem-se. A legislação sobre a segurança alimentar e a actuação da ASAE ultrapassaram todos os limites imagináveis da decência e do respeito pelas pessoas. A lei contra o tabaco está destituída de qualquer equilíbrio e reduz a liberdade.

NÃO SEI SE SÓCRATES É FASCISTA. Não me parece, mas, sinceramente, não sei. De qualquer modo, o importante não está aí. O que ele não suporta é a independência dos outros, das pessoas, das organizações, das empresas ou das instituições. Não tolera ser contrariado, nem admite que se pense de modo diferente daquele que organizou com as suas poderosas agências de intoxicação a que chama de comunicação. No seu ideal de vida, todos seriam submetidos ao Regime Disciplinar da Função Pública, revisto e reforçado pelo seu governo. O Primeiro-ministro José Sócrates é a mais séria ameaça contra a liberdade, contra autonomia das iniciativas privadas e contra a independência pessoal que Portugal conheceu nas últimas três décadas.

TEMOS DE RECONHECER: tão inquietante quanto esta tendência insaciável para o despotismo e a concentração de poder é a falta de reacção dos cidadãos. A passividade de tanta gente. Será anestesia? Resignação? Acordo? Só se for medo...

5 comentários:

Isabel Magalhães disse...

Lembro-me de ter assistido a uma entrevista ao Professor Cavaco Silva, aí pelo segundo mandato, em que dizia 'tout court':

"um dos problemas de Portugal é uma crise de autoridade."

Desde aí a crise continua.

Fernando Lopes disse...

Cidadania e educação para tal...Dr Barreto.

Na generalidade concordo com AB, mas fixemo-nos na última palavra MEDO..de quê?

Diria eu...de ser despedido, de não conseguir emprego, de não ter assistência condigna na saúde e na velhice. De não poder aceder à Justiça com igualdade dos direitos dos poderosos e endinheirados.E por fim, de não poder apanhar a migalha do poder, se houver oportunidade.

Enfim...hoje estou mais péssimista que AB.

Anónimo disse...

Sinceramente este medo é totalmente injustificado na minha optica pois se realmente o povo fosse unido e não apenas o disse-se por figurar num slogan famoso as coisas eram diferentes. O conceite KISS explica de uma forma simples isso mesmo. porquê complicar o que é simples. A a massa trabalhadora estivesse unida por objectivos comuns as coisas funcionavam de outra forma e não tinhamos os nossos ministros a dizer no estrangeiro que portugal é atractivo por sermos pouco contestatários. Enfim, estamos a falar do povinho e isso diz tudo. Em primeiro lugar o português tem que pensar como um todo só depois pensar em melhorar a nível pessoal. Mas isto são divagações do que muitos chamariam de utópico, o que se passa é que desta forma mais parecemos um país do terceiro mundo do que outra coisa qualquer.
Deixem de se tentar enganar uns aos outros e lutem por um bem comum...

Carlos Laginhas

Anónimo disse...

E digo mais sendo a manifestação um direito façam uso dela, agora não podemos é definir uma manifestação conforme dá jeito ou não ao final do mês no salário. Para podermos colher frutos no principio alguém tem que sofrer e esse alguém não é concerteza apenas o nosso vizinho é nosso dever contribuir para o sacrifício colectivo...mais uma vez serei acusado de idealista mas as coisas na minha cabeça são tão claras como a água que bebo todos os dias.

Carlos Laginhas

Anónimo disse...

Mas julgavam que a globalização era para ajudar a Humanidade a viver melhor?

Todos gostam do computadorzinho, dos mails de gajas e dos telemóveis cheios de mariquices, não é? Agora tomem lá com a devassa da vossa vida privada...

(atenção que eu também me incluo no grupo, também tenho computador e telemóvel)